florescer

carolina assumpção
3 min readJan 30, 2022

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Esta casa vazia, sem nenhuma decoração ou móvel sou eu, na verdade. O chão está cru, sem revestimentos e embalagens agradáveis que escondem a aspereza das marcas outrora desgastadas. De todas as experiências afetivas, esta foi a que quase — literalmente — me matou. “Eu te amo” não sustenta relação; ela deve se firmar por si própria. Aprendi isso a duras penas, como já te contei ontem. Você me avisou, eu sei, porém eu não consegui ver o que estava a um palmo e, por vezes, até menos, de distância.

Estou desnudada, desolada. Por dentro e por fora. Eu me sinto mais eu, talvez seja pela urgência de sinceridade comigo mesma, talvez pelo melhor horário do dia, o entardecer. Com sinais de seu fim e o recomeço de um novo, a consciência vai se pondo junto com o dia. Entre as quatro e as seis, muita coisa acontece: cafés da tarde entre avós e netas, um cigarro de fim de expediente, a parte mais divertida da brincadeira das crianças na rua. Aliás, tudo isso acontece nesse momento. Minha vizinha Margarida, que me visitou hoje mesmo, me presenteou com bolinhos de chuva e uma xícara de café coado.

Por bons modos, convidei-a para entrar nesta casa — em processo de (re)construção — e isto lhe causou inconformismo: menina, você não tem nada. Sejamos sinceras, ela não estava de todo certa, dado que eu tenho uma cadeira. Sim, está quebrada, parece que não tem conserto. Mas é coisa de família, o pouco que me restou, é difícil se desfazer. Carrego comigo também uma caixa de cartas, que são um conjunto de trocas, memórias e bons encontros que vivenciei — familiares com cartões de feliz natal, os namoradinhos da adolescência com as promessas eternas de amor que duraram, no máximo, seis semanas.

Dona Margarida, uma senhora engajada com a vida, bastante severina, trouxe baldes de tinta. Três baldes cheios com uma pasta laranja, uma mistura de urucum com cúrcuma, fruto de uma tentativa caseira de colorir paredes. Ela me contou que recomeços pedem laranja, com aquelas histórias de cromoterapia, um pouco de amor vindo do vermelho em combinação com a alegria vibrante do amarelo. Papo de mulheres vividas, não sou de duvidar. E me trouxe um balde vazio, recomendando que eu colocasse flores que, até as artificiais, eram vida.

Respirei fundo, inspirando um cheiro forte de tinta com café fresquinho, comi os bolinhos e o olhei pela janela. Expirei o alívio de estar naquele cômodo, então meu, finalmente meu. Não estava só. Caminhava pelo mundo com itens de primeira necessidade, aqueles que me levavam a memórias. Quando a gente aprende que quando o amor não está mais sendo servido, é preciso se levantar da mesa, pegar sua própria cadeira e partir. A vida pode florescer de novo, seja em um buquê falso, seja pelas vizinhas floridas. É hora de recomeçar.

Rogério Cavancanti (fotógrafo)

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