fim

carolina assumpção
3 min readMar 31, 2023

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O nosso fim já havia sido anunciado há tempos. Entre brados e sussurros, não havia quaisquer possibilidades de um futuro a curtíssimo prazo tomar corpo e forma nas nossas vidas. Mas seguíamos juntos com medo de enfrentar a solidão — quiçá nosso único ponto atualmente em comum. A vida em um apartamento pequeno, bem decorado, admirado por familiares e amigos é um dos espaços mais vazios que já morei em minha vida. Nem as molduras de quadros divertidos, nem as xícaras de nossas viagens de cinco décadas, tampouco óleos essenciais de alecrim ou lavanda traziam a sensação de lar. As cores e os aromas reiteram, dia após dia, semana após semana, que o fim do fim já é presente.

Não aceito; não aceitamos. Tento, com todas as minhas forças anêmicas, convencer meu corpo e o destino que ainda pode florescer afeto, apesar de toda aridez da relação. Tentamos. Visto belas e novas lingeries e tento. Uma espécie de investimento no gozo. Trajo preto dos pés a cabeça; qualquer fio que me toca, rendas e sedas, são todos escuros. Com flores naturais e à meia luz, o nosso quarto se parece com um velório, ainda que a intenção fosse compor um ninho de amor — e o amor tem também suas despedidas.

Toco-me e arrepio-me toda, uma onda de energia me atravessa. Em um impulso, arranco o meu penhoar de seda. Aproximo-me de meu marido, aos poucos, com cuidado e medo. É um conhecido desconhecido. Os nossos corpos se encostam e afasto-me. Seminua, começo a tirar o sutiã. Começo pela alça direita, seguido da alça esquerda. Meus ombros rebolam sutilmente com o caimento das alças. Até que a renda e os fechos se confundam e se enlaçam. Sem graça, percebo o remate da tentativa de magia da sedução. Mais uma investida malograda. Peço ajuda e ele solta um sorriso genuíno (com os poucos dentes que lhe restam), uma raridade nos últimos tempos. Sem cenho franzido, olhos cerrados e sobrancelhas levantadas, dois segundos de riso despertam. Mesmo em velórios e despedidas, o amor atravessa como um feixe de luz na escuridão.

Ele abre com delicadeza o fecho. Persisto. Com a calma que não me habita, distancio as rendas de mim. Subo em nossa cama, de frente pra ele e danço. O corpo se solta, se liberta, meu corpo dança comigo. Vivemos, eu e meu corpo, a coreografia orquestrada do adeus. Braços e pernas conversam, se amam com ritmo. Dou um giro com salto, com todo o repertório das aulas de balé que nunca fiz. A minha calcinha se torna uma saia rodada; meus braços são asas dispostas a voar. Mas caem em solo semi-firme, de um colchão amaciado por corpos cansados.

Esbarro no copo com a dentadura dele coberto por água. Tudo se inunda com pouco menos de meio litro de água. Livros de cabeceira, fotografias ternas, caderno de sonhos, agora úmidos e manchados. Despidos de roupas e sons, nos conectamos. Ele traz toalhas e lençóis para sorver um pouco da desgraça líquida. Não há choros, apenas respirações descompassadas. Nós envelhecemos, é verdade, as rugas são notórias; mas nosso amor envelheceu mal, curtido no silêncio e no vazio inundado de quinquilharias. Não há tecidos que sorvam as desgraças sólidas que não sejam a morte. A palavra fim ressoa no quarto, velando a fadiga e o desamor.

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